Caro professor –
Rubem Alves
Caro professor: compreendo a sua situação. Foi contratado para ensinar
uma disciplina e ganha para isso. A escolha do programa não foi sua. Foi
imposta. Veio de cima. Talvez tenha ideias diferentes. Mas isso é irrelevante.
Tem de ensinar o que lhe foi ordenado. Será julgado pelos resultados do seu
ensino e disso depende o seu emprego. A avaliação do seu trabalho faz-se por
meio da avaliação do desempenho dos seus alunos. Se, de uma forma sistemática,
os
seus alunos não aprenderem, é porque não tem competência.
O processo de avaliação dos alunos é curioso. Imagine uma pessoa que
conheça uma série de ferramentas, a forma como são feitas, a forma como
funcionam mas não saiba para que servem. Os saberes que se ensinam nas
escolas são ferramentas. Frequentemente os alunos dominam abstratamente os
saberes, sem entretanto conhecerem a sua relação com a vida.
Como aconteceu com aquela assistente de bordo a quem perguntei o nome de
um rio perto de Londrina, no norte do Paraná. Ela respondeu-me: Acho que é o São Francisco. Apanhei um susto. Pensei
que tinha apanhado o voo errado e que estava a chegar ao norte de Minas…
Garanto que, numa prova, a rapariga responderia certo. No mapa saberia onde se
encontra São Francisco. Mas não aprendera a relação entre o símbolo e a
realidade.
É possível que os alunos acumulem montanhas de conhecimentos que os
levarão a passar nos exames, sem saber para que servem. Como acontece com os
“vasos comunicantes” que qualquer pedreiro sabe para que servem sem,
entretanto, conhecerem o seu nome. O pedreiro seria reprovado na avaliação
escolar, mas construiria a casa no nível certo. Mas você não é culpado. Você é
contratado para ensinar a disciplina.
Cada professor ensina uma disciplina diferente: Física, Química,
Matemática, Geografia, etc. Isso é parte da tendência que dominou o
desenvolvimento da ciência: especialização, fragmentação. A ciência não conhece
o todo, conhece as partes. Essa tendência teve consequências para a prática da
medicina: o corpo como uma máquina formada por partes isoladas. Mas o corpo não
é uma máquina formada por partes isoladas.
Às vezes, as escolas fazem-me lembrar o Vaticano. O Vaticano, 400 anos
depois, penitenciou-se sobre Galileu e está prestes a fazer as pazes com
Darwin. Os currículos, só agora, muito depois da hora, estão a começar a falar
de “interdisciplinaridade”. “Interdisciplinaridade” é isto: uma maçã é, ao
mesmo tempo, uma realidade matemática, física, química, biológica, alimentar,
estética, cultural, mitológica, económica, geográfica, erótica…
Mas o facto é que você é o professor de uma disciplina específica. Ano
após ano, hora após hora, ensina aquela disciplina. Mas, como ser de dever, tem de fazer de forma competente aquilo
que lhe foi ordenado. A fim de sobreviver, faz o que deve devem submeter. O
pressuposto desse procedimento é que o saber é sempre uma coisa boa e que, mais
cedo ou mais tarde, fará sentido.
São sobretudo os adolescentes que, movidos pela inteligência da
contestação, perguntam sobre o sentido daquilo que têm de aprender. Mas
frequentemente os professores não sabem dar respostas convincentes. Para quê aprender o uso dessa ferramenta complicadíssima se não
sei para que serve e não vou usá-la? A única resposta é: Tens de aprender porque sai no exame – resposta
que não convence por não ser inteligente mas simplesmente autoritária.
O que está pressuposto, nos nossos currículos, é que o saber é sempre
bom. Isso talvez seja abstratamente verdade. Mas, nesse caso, teríamos de
aprender tudo o que há para ser aprendido – o que é tarefa impossível. Quem
acumula muito saber só prova um ponto: que é um idiota de memória boa. Não faz
sentido aprender a arte de escalar montanhas nos desertos, nem a arte de fazer
iglos nos trópicos. Abstratamente, todos os saberes podem ser úteis. Mas, na
vida, a utilidade dos saberes subordina-se às exigências práticas do viver.
Como diz Cecília Meireles: O mar é longo, a vida é curta.
Eu penso a educação ao contrário. Não começo com os saberes. Começo com
a criança. Não julgo as crianças em função dos saberes. Julgo os saberes em
função das crianças. É isso que distingue um educador. Os educadores olham
primeiro para o aluno e depois para as disciplinas a serem ensinadas. Os educadores
não estão ao serviço de saberes. Estão ao serviço de seres humanos – crianças,
adultos, velhos. Dizia Nietzsche: Aquele que é um mestre,
realmente um mestre, leva as coisas a sério – inclusive ele mesmo – somente em
relação aos seus alunos. (Nietzsche, Além do bem e do mal).
Eu penso por meio de metáforas. As minhas ideias nascem da poesia.
Descobri que o que penso sobre a educação está resumido num verso célebre de
Fernando Pessoa: Navegar é preciso. Viver não é preciso.
Navegação é ciência, conhecimento rigoroso. Para navegar, são
necessários barcos. E os barcos fazem-se com ciência, física, números, técnica.
A própria navegação se faz com ciência: mapas, bússolas, coordenadas,
meteorologia. Para a ciência da navegação é necessária a inteligência instrumental,
que decifra o segredo dos meios. Barcos, remos, velas e bússolas são meios.
Já o viver não é coisa precisa. Nunca se sabe ao certo. A vida não se
faz com ciência. Faz-se com sapiência. É possível ter a ciência da construção
de barcos e, ao mesmo tempo, o terror de navegar. A ciência da navegação não
nos dá o fascínio dos mares e os sonhos de portos onde chegar. Conheço um
erudito que tudo sabe sobre filosofia, sem que a filosofia jamais tenha tocado
a sua pele. A arte de viver não se faz com a inteligência instrumental. Ela
faz-se com a inteligência amorosa.
A palavra amor tornou-se maldita entre os educadores que pensam a
educação como ciência dos meios, ao lado de barcos, remos, velas e bússolas.
Envergonham-se de que a educação seja coisa do amor-piegas. Mas o amor –
Platão, Nietzsche e Freud sabiam-no – nada tem de piegas. O amor marca o
impreciso círculo de prazer que liga o corpo aos objetos. Sem o amor tudo nos
seria indiferente – inclusive a ciência.
Não teríamos sentido de direção, não teríamos prioridades. A
inteligência instrumental precisa de ser educada. Parte da educação é ensinar a
pensar. Mas essa educação, sendo necessária, não é suficiente. Os meios não
bastam para nos trazer prazer e alegria – que são o sentido da vida. Para isso é
preciso que a sensibilidade seja educada. Fernando Pessoa fala, então, na
educação da sensibilidade.
Educação da sensibilidade: Marx, nos Manuscritos de 1844,
dizia que a tarefa da História, até então, tinha sido a de educar os sentidos:
aprender os prazeres dos olhos, dos ouvidos, do nariz, da boca, da pele, do
pensamento (Ah! O prazer da leitura!). Se fôssemos animais, isso não seria
necessário. Mas somos seres da cultura: inventamos objetos de prazer que não se
encontram na natureza: a música, a pintura, a culinária, a arquitetura, os
perfumes, os toques.
No corpo de cada aluno encontram-se, adormecidos, os sentidos. Como na
história da Bela Adormecida… É preciso
despertá-los, para que a sua capacidade de sentir prazer e alegria se expanda.
Rubem Alves
Gaiolas
ou Asas
A
arte do voo ou a busca da alegria de aprender
Porto, Edições Asa, 2004
Caro professor: compreendo a sua situação. Foi contratado para ensinar
uma disciplina e ganha para isso. A escolha do programa não foi sua. Foi
imposta. Veio de cima. Talvez tenha ideias diferentes. Mas isso é irrelevante.
Tem de ensinar o que lhe foi ordenado. Será julgado pelos resultados do seu
ensino e disso depende o seu emprego. A avaliação do seu trabalho faz-se por
meio da avaliação do desempenho dos seus alunos. Se, de uma forma sistemática,
os
seus alunos não aprenderem, é porque não tem competência.
O processo de avaliação dos alunos é curioso. Imagine uma pessoa que
conheça uma série de ferramentas, a forma como são feitas, a forma como
funcionam mas não saiba para que servem. Os saberes que se ensinam nas
escolas são ferramentas. Frequentemente os alunos dominam abstratamente os
saberes, sem entretanto conhecerem a sua relação com a vida.
Como aconteceu com aquela assistente de bordo a quem perguntei o nome de
um rio perto de Londrina, no norte do Paraná. Ela respondeu-me: Acho que é o São Francisco. Apanhei um susto. Pensei
que tinha apanhado o voo errado e que estava a chegar ao norte de Minas…
Garanto que, numa prova, a rapariga responderia certo. No mapa saberia onde se
encontra São Francisco. Mas não aprendera a relação entre o símbolo e a
realidade.
É possível que os alunos acumulem montanhas de conhecimentos que os
levarão a passar nos exames, sem saber para que servem. Como acontece com os
“vasos comunicantes” que qualquer pedreiro sabe para que servem sem,
entretanto, conhecerem o seu nome. O pedreiro seria reprovado na avaliação
escolar, mas construiria a casa no nível certo. Mas você não é culpado. Você é
contratado para ensinar a disciplina.
Cada professor ensina uma disciplina diferente: Física, Química,
Matemática, Geografia, etc. Isso é parte da tendência que dominou o
desenvolvimento da ciência: especialização, fragmentação. A ciência não conhece
o todo, conhece as partes. Essa tendência teve consequências para a prática da
medicina: o corpo como uma máquina formada por partes isoladas. Mas o corpo não
é uma máquina formada por partes isoladas.
Às vezes, as escolas fazem-me lembrar o Vaticano. O Vaticano, 400 anos
depois, penitenciou-se sobre Galileu e está prestes a fazer as pazes com
Darwin. Os currículos, só agora, muito depois da hora, estão a começar a falar
de “interdisciplinaridade”. “Interdisciplinaridade” é isto: uma maçã é, ao
mesmo tempo, uma realidade matemática, física, química, biológica, alimentar,
estética, cultural, mitológica, económica, geográfica, erótica…
Mas o facto é que você é o professor de uma disciplina específica. Ano
após ano, hora após hora, ensina aquela disciplina. Mas, como ser de dever, tem de fazer de forma competente aquilo
que lhe foi ordenado. A fim de sobreviver, faz o que deve devem submeter. O
pressuposto desse procedimento é que o saber é sempre uma coisa boa e que, mais
cedo ou mais tarde, fará sentido.
São sobretudo os adolescentes que, movidos pela inteligência da
contestação, perguntam sobre o sentido daquilo que têm de aprender. Mas
frequentemente os professores não sabem dar respostas convincentes. Para quê aprender o uso dessa ferramenta complicadíssima se não
sei para que serve e não vou usá-la? A única resposta é: Tens de aprender porque sai no exame – resposta
que não convence por não ser inteligente mas simplesmente autoritária.
O que está pressuposto, nos nossos currículos, é que o saber é sempre
bom. Isso talvez seja abstratamente verdade. Mas, nesse caso, teríamos de
aprender tudo o que há para ser aprendido – o que é tarefa impossível. Quem
acumula muito saber só prova um ponto: que é um idiota de memória boa. Não faz
sentido aprender a arte de escalar montanhas nos desertos, nem a arte de fazer
iglos nos trópicos. Abstratamente, todos os saberes podem ser úteis. Mas, na
vida, a utilidade dos saberes subordina-se às exigências práticas do viver.
Como diz Cecília Meireles: O mar é longo, a vida é curta.
Eu penso a educação ao contrário. Não começo com os saberes. Começo com
a criança. Não julgo as crianças em função dos saberes. Julgo os saberes em
função das crianças. É isso que distingue um educador. Os educadores olham
primeiro para o aluno e depois para as disciplinas a serem ensinadas. Os educadores
não estão ao serviço de saberes. Estão ao serviço de seres humanos – crianças,
adultos, velhos. Dizia Nietzsche: Aquele que é um mestre,
realmente um mestre, leva as coisas a sério – inclusive ele mesmo – somente em
relação aos seus alunos. (Nietzsche, Além do bem e do mal).
Eu penso por meio de metáforas. As minhas ideias nascem da poesia.
Descobri que o que penso sobre a educação está resumido num verso célebre de
Fernando Pessoa: Navegar é preciso. Viver não é preciso.
Navegação é ciência, conhecimento rigoroso. Para navegar, são
necessários barcos. E os barcos fazem-se com ciência, física, números, técnica.
A própria navegação se faz com ciência: mapas, bússolas, coordenadas,
meteorologia. Para a ciência da navegação é necessária a inteligência instrumental,
que decifra o segredo dos meios. Barcos, remos, velas e bússolas são meios.
Já o viver não é coisa precisa. Nunca se sabe ao certo. A vida não se
faz com ciência. Faz-se com sapiência. É possível ter a ciência da construção
de barcos e, ao mesmo tempo, o terror de navegar. A ciência da navegação não
nos dá o fascínio dos mares e os sonhos de portos onde chegar. Conheço um
erudito que tudo sabe sobre filosofia, sem que a filosofia jamais tenha tocado
a sua pele. A arte de viver não se faz com a inteligência instrumental. Ela
faz-se com a inteligência amorosa.
A palavra amor tornou-se maldita entre os educadores que pensam a
educação como ciência dos meios, ao lado de barcos, remos, velas e bússolas.
Envergonham-se de que a educação seja coisa do amor-piegas. Mas o amor –
Platão, Nietzsche e Freud sabiam-no – nada tem de piegas. O amor marca o
impreciso círculo de prazer que liga o corpo aos objetos. Sem o amor tudo nos
seria indiferente – inclusive a ciência.
Não teríamos sentido de direção, não teríamos prioridades. A
inteligência instrumental precisa de ser educada. Parte da educação é ensinar a
pensar. Mas essa educação, sendo necessária, não é suficiente. Os meios não
bastam para nos trazer prazer e alegria – que são o sentido da vida. Para isso é
preciso que a sensibilidade seja educada. Fernando Pessoa fala, então, na
educação da sensibilidade.
Educação da sensibilidade: Marx, nos Manuscritos de 1844,
dizia que a tarefa da História, até então, tinha sido a de educar os sentidos:
aprender os prazeres dos olhos, dos ouvidos, do nariz, da boca, da pele, do
pensamento (Ah! O prazer da leitura!). Se fôssemos animais, isso não seria
necessário. Mas somos seres da cultura: inventamos objetos de prazer que não se
encontram na natureza: a música, a pintura, a culinária, a arquitetura, os
perfumes, os toques.
No corpo de cada aluno encontram-se, adormecidos, os sentidos. Como na
história da Bela Adormecida… É preciso
despertá-los, para que a sua capacidade de sentir prazer e alegria se expanda.
Rubem Alves
Gaiolas
ou Asas
A
arte do voo ou a busca da alegria de aprender
Porto, Edições Asa, 2004